Vivemos hoje num mundo de incertezas, em plena crise, não só económica, não só de valores, mas também de identidade. Torna-se cada vez mais difícil diferenciarmo-nos do colega na secretária ao lado (ou pior, do número anterior ao nosso na fila do Centro de Emprego), diferenciarmos o Pais dos últimos valores dos juros da dívida pública, diferenciarmos o mundo de uma avalanche de acontecimentos que deixam muitas dúvidas sobre o nosso lugar daqui por dez dias, dez meses ou dez anos...
Este é um tempo de crise, um tempo de dúvida, um tempo de perigo. De acordo! Mas não podemos baixar os braços e considerar que este seja um tempo de desesperança, de derrotismo ou de angústia! Cada crise é sempre ocasião de uma nova oportunidade, uma ocasião para nos reerguermos, uma ocasião para tomar um novo rumo.
Como o conseguiremos? Com trabalho, com esforço e muito empenho, sem dúvida! Mas a resposta está, creio, para além disso: há que fazer toda uma refundação, todo um investimento em valores que, ao longo dos últimos anos, acabaram por perder o seu espaço.
Falo aqui de um exercício de Ética e de Cidadania.
A Ética, como “cola” de todo o nosso tecido social, não como um manual de boas práticas (muito menos, um conjunto de regras rígidas), mas como o conjunto de imperativos que condicionam a nossa acção. Muita gente (ainda) tem a ideia, falsa e pós-moderna, de que a nossa liberdade é ilimitada e que quaisquer condicionalismos a essa mesma liberdade a põem em causa. No entanto, quer a Filosofia quer a nossa experiência da realidade nos mostram que a liberdade absoluta, não condicionada, é um mito. Há, pois, que redefinir o nosso conceito colectivo de liberdade e nele admitir a possibilidade e a necessidade de ela ser condicionada. Ora, é precisamente da arte de conciliar a nossa liberdade com os seus condicionalismos que trata a ética. Escrevia S. Paulo (1 Cor 6,12) que “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”. Assim, pois, somos nós chamados a entender que nem tudo o que nos é permitido nos convém.
Por outro lado, a Cidadania, que podemos entender como uma extensão da própria Ética, numa vertente direccionada para a integração do ser humano na sua sociedade. Apelo aqui a uma mobilização de cada um no sentido de se auto-responsabilizar na construção de uma sociedade melhor. É um dever inalienável e o único caminho de futuro para o cumprimento de uma ambição mais do que legítima, a de deixarmos um mundo melhor para os nossos descendentes. A Cidadania traduz-se, claro, no modo como nos desacomodamos, intervimos e participamos na construção de uma sociedade ao mesmo mais tempo mais justa e mais livre. É certo que a democracia cntemporânea retirou várias armas a quem quer desinstalar-se (a seu tempo, cá voltaremos), mas, ainda assim, é uma irresponsabilidade de cada um demitir-se do processo de decisão e de crescimento de uma sociedade.
E na prática, perguntar-me-eis? Bem, na prática, tudo conta! Desde o modo como me levanto de manhã até à maneira como decido concorrer à Presidência da República. E tudo o resto pelo caminho: ser responsável nos meus estudos; ser motor de alegria no meu meio profissional, na minha família e com os meus amigos; escrever num blog; votar; assinar uma petição por uma causa justa; participar numa manifestação; promover o outro que, no meu próprio meio, é desvalorizado; dar uma parte do que tenho a quem mais precisa; criar um grupo de voluntariado; etc., etc., etc. …
Claro que podemos optar pelo caminho contrário, por nos demitirmos da nossa responsabilidade, por nos deixarmos adormecer neste torpor colectivo que parecemos atravessar. Mas pergunto: estaremos a fazer o que nos convém? Estaremos a viver à altura do nosso potencial, à altura do nosso dever?
Deparei-me hoje, por acaso, com o seguinte excerto de Emil Cioran, retirado de Do inconveniente de ter nascido: “Deveríamos repetir a nós próprios todos os dias: Sou um daqueles que, entre milhares, se arrastam pela superfície do globo. Essa banalidade justifica qualquer conclusão, qualquer comportamento ou acto: deboche, castidade, suicídio, trabalho, crime, preguiça ou rebelião. […] E daí se conclui que todos nós temos razão em fazer o que fazemos.” É precisamente este tipo de lógica que nego – defendo uma responsabilidade pessoal por parte de cada um para consigo próprio e para com todo o mundo.
O potencial de mudança reside dentro de cada um, a partir do modo como nos relacionamos com o mundo em que vivemos. Possa cada um de nós ser motor de uma mudança de que cada vez estamos mais necessitados!
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